Não tenho o costume de ver o canal Record, por motivos que não caberiam nesse texto. Muito menos as novelas, embora eu tenha sido fã de carteirinha da trilogia de fantástica/Sci-fi/Terror /YA/etc que foi “Caminhos no Coração”. Sem ironia, foi um marco importante para gêneros de nicho aqui no Brasil.
Todavia, quis o destino que hoje, durante o final do meu treino da academia, quando estava correndo na esteira, que a TV estivesse ligada na novela Jezabel do dito canal, o que é bem comum, afinal é nesse área que as senhorinhas se exercitam vendo novela. Mas sem ninguém lá dessa vez e eu sem vontade de mudar de canal (não assisto nada porque tenho que colocar os podcasts em dia), então deixei ligada.
E quase vomitei.
Serio, tive um ataque de ansiedade e minha pressão caiu. Não pelo choque das cenas, eu assisto Game of Thrones e sou fã de carteirinha do sanguinolento Tarantino, mas por não estar preparado para aquilo e também pela forma “glorificada” que a violência foi mostrada. Tive que parar de correr quando vi todo aquele mar de sangue desnecessário rolando. MULHERES sendo assassinadas, jovens tendo gargantas rasgadas, velhos sendo decapitados. Tudo sem pudor, sem uma direção audiovisual que mostrasse “tristeza” ou “repúdio” nas cenas. Não era como as mortes de inocentes numa batalha medieval, era mortes de inocentes sendo ovacionadas sem ironia alguma. Todas aquelas mortes, todo aquele genocídio foi filmado como algo divino. Algo cristão.
“Mas como assim, Ton?”
Basicamente, a cena, da novela bíblica Jezabel, mostra um desafio entre duas religiões em Israel. Uma que acreditava em Baal e a outra pré-cristã, para ver qual tinha o “Deus verdadeiro”. É a parte de Elias em “Reis” na Bíblia e, de fato, é uma passagem pesada.
Na parte em questão, dois grupos de adoradores fazem sacrifícios e demonstrações de fé para provar sua fé ao rei. Os sacerdotes de Baal fazem o rito deles. Fosse culturalmente (não conheço essa religião), fosse porque a emissora queria realmente mostrar que o quão “horrível” eram os pagãos (aposto mais nisso), tudo é filmado como se eles fizessem algo profano, com caras de mau, trilha ameaçadora, toda uma direção artística para mostrar o quão “bárbaros e desumanos” são eles. Inclusive, colocaram “referências” a práticas de religiões de matriz africana, uma mensagem que de subliminar não tem nada. A velha tática de desumanizar o diferente, o “inimigo”, pois assim muitos evangélicos enxergam outras religiões. Depois vem a parte dos pré-cristãos. Mostra o quão santificados são eles. E claro, o Deus verdadeiro se prova sendo o deles.
Até aí não tinha me espantado. Era lógico que uma emissora evangélica em uma novela bíblica fosse demonizar o outro lado. Não seria ou será a ultima vez que o fazem com outra religião. É só lembrar que a emissora foi condenada esse ano pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região há de transmitir quatro programas sobre religiões de matriz africana, por ter veiculado agressões a religiões de origem africana.
Porém o horror que descrevi veio depois. Na novela, os pré-cristãos, ao serem reconhecidos como “aqueles que tem o Deus verdadeiro”, assassinam todos os seguidores de Baal. Estou falando de toda uma tribo sendo morta. Centenas de mulheres, crianças e jovens, ninguém é poupado. De fato isso acontece na Bíblia e por ser uma parte forte e controversa, os diretores poderiam ter mostrado sem enfase, ou só “contando que houve o massacre” ou até mesmo mostrado o massacre como algo trágico, não como algo “certo a se fazer”.
Só que a direção da novela, sem bom senso ou de propósito, glorificou esse genocídio. A trilha sonora se torna épica enquanto homens agarram uma mulher inocente, que nem devia ter uns 18 anos, e cortam seu pescoço. Homens segurando crianças e as apunhando como se as crianças fossem monstros e eles os heróis. Sim, mostram com “beleza” os homicídios.
Não é só extramente errado qualquer mídia glamorizar a violência, como a novela o fez em horário nobre, mas a novela em particular ainda foi mais fundo e colocou isso num contexto de “um povo escolhido por Deus” exterminando aqueles que tinham outra crença. Não é caso de um paladino que extermina necromantes num livro de fantasia. As cenas lembravam muito mais o atirador do recente massacre numa mesquita na Nova Zelândia, que chocou o mundo. Foi além do maniqueísmo, foi “a minha verdade é essa e vou matar qualquer um que não concorde”. A diferença era que o atirador era um insano, mas isso aqui é toda a produção de novela.
Logo, se a novela passou uma mensagem clara de que a outra religião tem quer ser exterminada e isso é o certo a fazer, usando de uma violência gráfica mais forte que a da HBO, por exemplo, isso não é algo artístico como um Tarantino ou o próprio Game of Thrones. Isso dá medo e é antiético.
Mesmo eu sendo espírita de uma linha cristã, não só me senti ofendido e enojado, como preocupado. Até mesmo amigos evangélicos meus, que respeitam outras crenças, se sentiram incomodados. Vale lembrar também, que essa é a mesma emissora braço direito de um presidente belicista que diz que as minorias devem se curvar, que diz que o país deve seguir apenas uma religião, o que inflama tudo ainda mais.
E ainda que eu tenha ótimas amizades evangélicas, todos sabemos que a intolerância religiosa está em alta no país. Que há pessoas morrendo com isso. Daí, essa mesma emissora mostrando um massacre de toda uma religião diferente de maneira glorificada, sem um pingo de reflexão, com excesso de violência, apenas está colocando, propositalmente ou não, mais lenha na fogueira na nesse grande problema que enfrentamos no Brasil e no mundo.
Irônico que uma novela tão fiel a bíblia, que quer perpetuar ensinamentos “cristãos”, na verdade, perpetua a corrupção de um de seus mandamentos bíblicos mais importantes:
“Não matarás”